A terceira quilha: destino e perseverança

A inovação é o signo nossa era. Desde o início do século XX, vimos uma arrancada da civilização em termos tecnológicos sem precedentes

08/Out/2012 - Guilherme Pallerosi - Brasil

Entre 1900 e 1980 o surf renasceu, tornou-se uma subcultura e um mercado promissor com grandes avanços tecnológicos. Até a década de 1970 houve muitas experimentações nos modelos de pranchas de surf, além de blocos leves e resinas resistentes, o design dos shapes e quilhas permitiam um novo tipo de surf, veloz e cheio de manobras extremas. No início da década de 1980 um modelo de pranchas de surf virou febre e a prancha com três quilhas se tornaria um paradigma por mais de 30 anos.

Simon Anderson desenvolveu o modelo com três quilhas gêmeas batizada de Thruster, que se consagrou o predileto da maioria dos surfistas até hoje. O segredo do sucesso foi unir muitas experiências bem sucedidas anteriormente com um diferencial que agrega versatilidade: a terceira quilha. Isto porque as monoquilhas da época deixavam o surf seguro e linear, mas prendiam a prancha nas manobras, enquanto as biquilhas, ao contrário, possibilitavam um bombardeio de manobras, mas sem estabilidade nas ondas grandes e rápidas. A Thruster uniu as melhores qualidades dos modelos testados até então.

A lógica é simples, mas a thruster se tornou popular por esforço de Simon Anderson e principalmente sorte. O australiano Anderson era um surfista profissional que dedicava parte do tempo ao design de pranchas (ainda era comum os surfistas profissionais também serem shapers de pranchas). Da mesma linhagem de outros surfistas australianos, como Nat Young, Peter Drouyn, e David Humphrey, até final da década de 1970 Anderson havia conseguido boas colocações em campeonatos nacionais e no ranking do mundial, surfando principalmente em pranchas monoquilhas (por ser muito alto, não se dava tão bem com as biquilhas). Nesta época Mark Richards era o campeão absoluto do WCT (World Championship Tour), assim como o modelo biquilha desenvolvido por ele.

Um dia Anderson observou que uma prancha de seu colega Frank Williams tinha, além das duas quilhas convencionais, uma pequena quilha estabilizadora centralizado na parte de traz. Esta foi a solução ao desempenho das biquilhas e o momento da concepção da Thruster, com 3 quilhas do mesmo tamanho dispostas de forma triangular. Era outubro de 1980.

Mas o modelo de três quilhas quase não foi notado. Em 1981 Anderson expôs sua triquilha em uma feira de surf em Orlando (EUA), onde foi motivo de muitas piadas. Em seguida, competiu sem muito alarde em Burleigh Heads (AUS) onde foi desclassificado e a Thruster saiu anônima. Eis que inicia um dos campeonatos mais tradicionais da Austrália, o Rip Curl Pro Bells Beach e Anderson venceu a primeira bateria com suas triquilha Thruster, ainda sem levantar interesse.

O segundo dia Bells Beach amanheceu em condições épicas, com ondas perfeitas de até 12 pés (4 metros) e um oponente dos mais difíceis, o havaiano de North Shore, Bobby Owens. Bobby surfava com um modelo gun monoquilha, enquanto Anderson exibia a novidade de três quilhas, travando uma competição foi acirrada. Todos mantiveram os olhos fixos nos competidores daquele dia memorável e a cada onda as opiniões se dividiam, mas por fim, a Thruster saiu da água mais campeã que o próprio Anderson. Naquelas condições, o sucesso foi instantâneo e todos vieram perguntar sobre a prancha inusitada de três quilhas e seu bom desempenho em ondas grande ou pequenas. Foi exatamente este o dia que as triquilhas se transformaram no novo paradigma do surf. A inovação da prancha Thruster pegou e se manteve, graças àquela vitória em Bells Beach.

Estranhamente, na mesma época o brasileiro Ricardo Bocão saiu exibindo outra invenção, as quadriquilhas (ou quadfin) que não obteve mesmo o sucesso da Thruster. Hoje as pranchas com quatro quilhas estão voltando com força para desbancar o paradigma das três quilhas e me trazem sérias dúvidas: e se Anderson não tivesse competido, ou seu desempenho tivesse sido dos piores? E se Netuno o presenteasse com condições tão perfeitas na famosa Bells Beach e ninguém notasse? As três quilhas teriam se tornado o paradigma das pranchas de surf por mais de 30 anos, ou seriam vistas como mais uma experiência excêntrica? Nunca vamos saber, mas muito além das qualidades da Thruster, de possíveis estratégias de marketing ou coisas o valham, algo me diz que Anderson é um shaper talentoso e com muita sorte...

Para mais matérias sobre história do surf e da construção de pranchas ancestrais (ancient boards) acesse o blog: http://madeiraeagua.blogspot.com/